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sábado, 17 de fevereiro de 2018

Chama sem pavio: uma história de quem não se cansa da rebeldia – Por Lorena Alves

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Lembro das aulas do meu ensino fundamental. Sinto saudade daqueles intervalos, ou recreios – como alguns chamam – em que cantava Titãs com as minhas amigas. Hoje, na faculdade, ainda canto a música “Televisão”, na voz da mesma banda que fez muito sucesso na cena do rock nacional. No fusca do meu pai também cantávamos aqueles versos: “Que tudo que a antena captar meu coração captura”, essa lembrança fará mais sentido daqui algumas linhas. No caminho para escola esboçava algumas ideias para o futuro e sempre com uma música na cabeça.
Parece que eu tinha tempo para pensar um pouco mais nos pequenos prazeres da vida. Na volta do colégio eu só me preocupava com o almoço e em ler um SMS amoroso… Mais tempo ou um tempo aproveitado de maneira diferente do que tenho hoje. A música “Comida”, da banda ícone dos anos 80 e dos meus 12, 13, 14, 15, opa, 18 anos, fazem cada vez mais sentido. Sigo querendo a vida como ela é. Não quero só dinheiro, mas agora de fato preciso de dinheiro. “A gente quer inteiro e não pela metade” eu cantava esse verso, analisava, entendia, mas não sentia como hoje sinto: como membro da família Vital, que luta para ter mais que o mínimo – desejo, necessidade, vontade. Nada com comodismo, nada com tempo de sobra. O capitalismo nos tirou quase tudo. A força não há quem tire.
Meus pais, eu e minhas irmãs, não passamos um dia sem bater de cara com as dificuldades de sermos pobres e desempregados. Um dos sonhos que martela em nossas cabeças é de passarmos do passo da necessidade para pensar na vontade e desejo. A situação financeira causa uma preocupação em outras proporções comparada com as de entregar um trabalho acadêmico, por exemplo. O medo dos meus pais é de faltar comida e dinheiro para manter as filhas estudando. Pensar nas necessidades é sobre chegar em casa e ouvir que seu pai está com os braços doendo do peso que carregou o dia todo para pagar um boleto no fim do dia. É saber que todo o trabalho braçal parece sem fim. É ouvir da mãe que o dinheiro tem um valor maior do que eu realmente imaginava que tinha enquanto voltava para casa nos brilhos dos meus 12 anos.
Às vezes minha bolha, nas redes sociais, fala que temos que aproveitar para viajar, tirar um tempo para descansar e não fazer necessariamente uma faculdade ou trabalhar. Aqui, na casa da família Vital, é preciso trabalhar o mais cedo que puder e correr para juntar um dinheirinho para comprar, por exemplo, uma máquina de lavar que não faça sua mãe sofrer tanto com as dores nas mãos e nos ombros.
Trabalhar, muitas vezes, significa ter o mínimo para minimizar as dores. Cresci tendo como inspiração quem rala duro. Mas não tendo a meritocracia como princípio, e sim a rebeldia. Ser rebelde é lutar pelo justo, é por vezes andar com a cara de cansaço e de repente dar um sorriso para fugir da cara da fome. Quando paramos para analisar em que pé estamos, veremos algumas cenas de felicidade: uma filha formada, um pão a mais na mesa, um elogio pela limpeza da máquina do companheiro de trabalho. Não enxergo a minha família como um elemento único, mas membro de uma série em cadeia de muitas famílias com os mesmos problemas que a nossa. O pobre não é único e não se pode dar ao luxo de pensar em ser. O rico quer um tempo para ele, enquanto o capitalismo afeta o tempo de quem não tem tempo para pensar no que se perde, mas reproduz um sistema que não quer saber da massa e sim do que a massa produz.
“Os sonhos não envelhecem”, como disse Milton Nascimento. Concordo que eles não envelhecem, porém eles se transfiguram, são adiados, reinventados, até chegar a cada pequena vitória. O sorriso do meu pai, admirado pela dedicação das filhas aos estudos é um sonho não envelhecido, tão pouco finalizado. O sonho é a continuação da persistência de um mundo mais justo e igualitário.
Nossa mãe, minha, de Catarina e Rafaela, sorri ao ver a caçula chegar da escola com a camiseta da UBES, e falar que conseguiu montar o grêmio no colégio. Eu sorri ao ver minha irmã, secundarista, tendo a consciência da responsabilidade de ser uma delegada representando a escola da periferia de Osasco. Rafaela, nossa irmã mais velha, entregou o TCC essa semana, com os olhos cheios de lágrimas deu a notícia hoje para o nosso velho: ela foi aprovada na faculdade. Rafa será a professora de História, marxista da quebrada, ainda mais querida pelos alunos, não só do cursinho popular que leciona atualmente.
Bem, eu, sigo acreditando no movimento estudantil e em suas reconfigurações. Tem gente que não vê significado em um centro acadêmico, diretório, DCE… Há quem ache que nada muda. Há quem acredite que ninguém faz nada para mudar. Eu acredito que a força de um estudante ultrapassa qualquer descrença e ausência de apoio. A batalha é mais árdua, mas não é impossível. Ser combativo é um desafio necessário.
Nem toda essa história deslumbrada pelos movimentos sociais e estudantis pode fazer sentido para quem está lendo. Essas linhas contam uma versão de uma identificação com a luta pela unidade popular.
Atualmente quando eu volto do serviço, no trem lotado, percebo que estou sempre ligada as minhas memórias e bandeiras. Ir a um ato para quem é da periferia, com as nossas pautas, tem um significado muito maior do que para o rico de esquerda que não teve dificuldade alguma para se locomover para o centro, onde a manifestação costuma ser realizada. Aqui, a gente costuma comemorar quando o ato é na viela de cima, quando a reunião feminista é na casa da colega da favela e torcemos para que os companheiros do centro da cidade consigam nos visitar, aliás, são forças que se somam. Às vezes parece que a esquerda dos ricos nem sempre se preocupa em ajudar quem não consegue se deslocar, mas tem sua presença confirmada em todas as manifestações no centro da cidade. Às vezes é apenas uma disputa de ego entre as turmas para ver quem grita mais. Nossa bandeira é hasteada cada dia em todos os momentos que exigem sermos quem somos. A vida nos exige mais do que disputa por imagem. Somos a própria disputa por narrativa.
Necessidade é a palavra. Lembro da minha aula de História no oitavo ano, uma sala de 44 estudantes, em que analisamos a música “Comida”, da banda Titãs. O que me reafirmo cada dia mais é que, assim como na letra da canção, sigo querendo o inteiro e não a metade. Nossa família quer o direito de ter vontade. O direito a falar que quer tirar um ano para descansar das condições desumanas de trabalho. Queremos ter a “ousadia” de poder falar que trabalhamos em situações precárias e exigir o mínimo de como tem que ser.
Você tem sede de quê? Você tem fome de quê? Você tem medo de quê?
O meu único medo é de morrer calada e sem memória. Comecei a estudar jornalismo há um ano e uma das primeiras coisas que me falaram é que jornalista não transforma o mundo. Talvez a gente não consiga mesmo transformá-lo, porém podemos encorajar quem lê, escuta, assiste… A provar um pouco de novos (velhos) mundos.
Ser comunicador é sentir e pensar mais no outro do que em você. Ocupar espaços e resistir na comunicação é contato, por o pé na rua e olhar na cara de quem está entrevistando. Há quem extrapole nisso e há quem se esqueça do outro por simples escolha. Colocar o rico na favela com algumas linhas é difícil, porque nada substitui o pé no baile funk, a sensação de dormir numa ocupação ou soltar pipa na laje. Não escrevemos para gaveta, escrever é um dos atos de pensar que o próximo pode querer vivenciar aquilo e lutar por transformação.
A gente não quer só o pão na mesa, a gente quer a vida de escolhas que os outros dizem por aí. A gente quer o passe livre para ter o acesso à cultura que os outros dizem por aí. Queremos frequentar o centro da inspiração, da criatividade, do teatro, que mostram as fotos por aí. A gente quer viver o que vê. Queremos ser o que dizemos que queremos ser.
O capitalismo minimiza o ser humano. Reduz suas habilidades e pressiona o que há de melhor em você. A resistência é diária e precisa da força de cada militante. Há dias que você se cansa e quer fugir. Há dias que você quer gritar e responder a altura dos absurdos que são direcionados a você. Há dias que o cansaço te puxa e quase convence que as coisas que você faz não valem à pena. A luta é diária e presente. Ela nunca pensa em sumir e sair de quem tem um coração rebelde pelo justo e popular.
Temos que ter mais tempo não só para os descansos dos ricos, mas para intervir na briga “de marido e mulher”, no corredor que separa a minha casa e da família Baptista. Batalhamos para dormir razoavelmente melhor, para sorrir mais e bufar menos no dia seguinte. Luto para arranjar um tempo, com menos caos, para escrever essas linhas. Ser estudante pobre é resistir dentro e fora da universidade. A antena capta informações, o jornalista captura histórias, mas meu coração e toda família Vital capturaram muito antes qualquer tipo de sensação que finge incorporar nos programas de sensibilização barata. Não precisamos de pessoas como Luciano Hulk, precisamos de gente com desejo de mudança e vontade de verdade. A antena captou muitas imagens nesses últimos anos. Nosso coração foi e é capturado pelas mídias em muitos momentos de nossas vidas, mas ainda preferimos a rebeldia presencial por nossos direitos. Os sonhos estão latentes como há anos atrás.
Músicas: “Televisão” dos Titãs, disco: “Televisão” (1985)
“Comida” – dos Titãs, disco: “Jesus não Tem Dentes no País dos Banguelas” (1987)
Foto de destaque: Karla Boughoff

Globo apoia a Beija-Flor, mas Tuiuti tem a força do povo: algo soa familiar? Por Joaquim de Carvalho

Tuiuti x Beija Flor: Tuiuti mostrou a causa dos nossos problemas, Beija Flor, as consequências
Por
 Joaquim de Carvalho
O Carnaval do Rio em 2018 já entrou para a história, mas o último capítulo desta jornada será escrito com a divulgação do resultado do júri, nesta quarta-feira.
Duas visões de mundo foram expostas nos desfiles deste ano e uma delas deve prevalecer, com o resultado das notas dos jurados.
Não significa que uma dessas duas escolas vá vencer, mas há uma disputa implícita entre a Paraíso do Tuiuti e a Beija-Flor de Nilópolis.
Não é uma questão técnica apenas, é uma questão política.
E é impossível dissociar o samba da política, não da política partidária, menor, mas daquela que define a relação entre as pessoas num território.
O samba trata do cotidiano, em geral das pessoas do morro, o morro que foi ocupado como resultado de um processo multissecular de exclusão social.
A arte do Carnaval está lá, desde sempre. Mas se encontra também em outras comunidades de excluídos.
Nesta Carnaval de 2018, de um lado, a Beija-Flor, se destacou pela apresentação com um enredo que poderia ser escrito por um editor do Globo, com alegorias que remetem à corrupção.
Ratos correndo com malas de dinheiro, o prédio da Petrobras em ruína, crianças abandonadas, miséria.
Como se todas essas mazelas fosse resultado da corrupção política exclusivamente.
É o roteiro da Lava Jato.
A Paraíso do Tuiuti, de outro lado, se destacou por apresentar a causa desse estado de coisas. Foi mais profunda, foi mais inteligente, foi intelectualmente mais sofisticada.
A escola, novata entre as grandes, retratou a escravidão, mas não como uma página virada da história do Brasil.
A escravidão que ecoa nos dias de hoje, através da ação uma elite insensível, gananciosa, mistificadora, manipuladora e sanguinária.
É o roteiro daqueles que denunciam a Lava Jato como um instrumento de afirmação de classe,  da classe dos que mandam, daqueles que estão acima da política institucional.
Jack Vasconcelos, o carnavalesco, mostrou que o golpe que tirou Dilma Rousseff do poder é resultado direto da mesma correlação de forças que fez do Brasil o último país a abolir a escravidão nas Américas.
Abolição que não se seguiu da necessária política compensatória, como aconteceu nos Estados Unidos no século XIX e aqui, só a partir de 2003, ainda que timidamente, no governo do PT.
Jack Vasconcelos criou os manifestoches, brasileiros manipulados a ponto de se apropriarem de símbolos que não lhe são exclusivos, como a camisa da Seleção Brasileira, ou que não lhe pertencem, como o bater de panelas, próprio de quem passa fome.
Manifestoches manipulados por uma mão grande, que pode ser a Globo, mas não só. Refere-se a todos os donos do poder.
Carteira de trabalhado queimada não é uma crítica à falta de trabalho regular, que obriga o brasileiro ao trabalho informal, como mentiu o jornalismo da Globo, ao descrever o desfile.
Foi uma alegoria que denuncia a extinção dos direitos, resultado da reforma trabalhista e da terceirização irrestrita, ambas frutos de uma intensa e antiga pressão dos donos da Globo.
A Tuiuti mostrou que a raiz dos nossos problemas está na desigualdade social, que se ampliou com o golpe e deve se ampliar ainda mais se o golpe não for contido.
A Beija-Flor mostrou o peso dos impostos na vida dos brasileiros, fazendo eco ao MBL, que não contam que quem paga imposto no Brasil é pobre, porque rico ou sonega, ou não é tributado.
O pobre, quando compra uma aspirina, paga imposto.
Para manter este estado de coisas é que se move a máquina da corrupção.
Tem, a  propósito, uma afiliada da Globo, a RBS, flagrada na Operação Zelotes, o raio x dos senadores, sem que até agora tenha sido incomodada pela Justiça.
Os donos da Globo foram denunciados por crime contra a ordem tributária, num processo da Receita Federal que descobriu sonegação milionária na aquisição dos direitos de transmissão da Copa de 2002.
O processo desapareceu da Receita Federal na véspera da denúncia ser enviada ao Ministério Público Federal.
Uma neta de Roberto Marinho teve seu nome encontrado na papelada do escritório brasileiro da Mossack Fonseca, que tinha uma única atividade: abrir as portas dos paraísos fiscais para a lavagem de dinheiro ou ocultação de patrimônio.
É um braço do escândalo mundial Panamá Papers, mas nada aconteceu com Paula Marinho, a neta de Roberto Marinho.
A mesma neta usufruiu durante muitos anos de um imóvel construído ilegalmente numa área de proteção ambiental em Parati.
O processo é antigo, tem mais de seis anos, e até agora a Justiça não conseguiu tomar o depoimento de uma mulher que é a laranja dos verdadeiros proprietários.
Essa mulher, que mora no Rio de Janeiro, ignora as intimações, e a Justiça Federal não cogita condução coercitiva, nesse caso absolutamente justificável.
No escândalo da Fifa, que envolve corrupção grossa, a Globo até agora se safa, como bagre ensaboado na mão de um pescador.
Seu diretor envolvido nas negociações de direitos de transmissão foi abatido pelas denúncias, mas permanece de boca fechada.
A lista de suspeitas envolvendo a Globo é extensa.
Mas nesta quarta-feira, depois do resultado, se der Beija-Flor, como parece ser seu desejo  — até comentarista internacional da emissora elogiou a escola —, a Globo repetirá a ladainha — o brasileiro não tolera corrupção, etc.
O buraco é mais embaixo, e a Tuiuti mostrou onde ele começa, mas, nas relações que se tecem a partir de um grupo de comunicação, a verdade — e o mérito — é o que menos importa.
A Beija-Flor, a propósito, tem relações antigas com a família Marinho.
Seu patrono, Anísio Abraão David, presidente de honra da Beija-Flor, comprou em 2004 de Roberto Marinho o triplex de cobertura em Copacabana, onde o fundador da Globo costumava receber convidados para uma famosa festa de Reveillon.
O triplex, já em nome de Anísio, acusado de explorar jogo ilegal, foi alvo em 2011 de uma operação cinematográfica da Polícia Civil, com agentes descendo de rapel de helicóptero para cumprir mandado de busca.
Anísio, condenado a mais de 47 anos de prisão, está solto e a escola em que ele manda se sente à vontade para denunciar a corrupção na avenida, com o incentivo e o elogio da TV da família Marinho.
Já a Tuiuti, este ano, chega ao júri do Carnaval com uma única força, a do povo.
Nunca o Carnaval espelhou tanto a realidade brasileira.
Fonte: DCM

Virado Paulista é reconhecido como Patrimônio Imaterial do Estado de São Paulo

virado

O tradicional prato que protagoniza o almoço dos paulistanos às segundas-feiras agora é, oficialmente, um patrimônio. O Condephaat – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Governo do Estado de São Paulo – reconheceu o famoso Virado Paulista como patrimônio cultural imaterial, de modo a preservar esta tradição e fortalecer sua importância para a história do estado.
O Virado Paulista, originalmente composto por feijão engrossado por farinha de milho ou de mandioca e toucinho de porco, marcou a formação do território nacional. Sua origem data do século XVII, na época do Brasil Colônia, como forma de alimentação nas monções e bandeiras. Durante as expedições, alimentos como o feijão, a farinha de milho, a carne-seca e o toucinho chacoalhavam e ficavam “revirados”, dando origem à iguaria. A diversidade do território paulistano também está presente na história do Virado, que carrega alimentos de origens indígenas, portuguesas, africanas e italianas. Com o tempo, ele se modificou e ganhou arroz, bisteca, torresmo, couve, ovo frito, banana e linguiça, com algumas adaptações de restaurante para restaurante.
De acordo com o parecer técnico da Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico que pautou a decisão do Condephaat, “o registro do Virado Paulista pode ampliar a visibilidade de uma característica marcante na História de São Paulo: a integração de culturas de diversas procedências, ainda que historicamente marcada por confrontos, dominações e resistências. Este prato expressa em sua composição uma demonstração da diversidade cultural característica de São Paulo”.
As justificativas do Condephaat para o reconhecimento do Virado giram em torno de sua importância nas viagens de expansão do território brasileiro. O prato agrega séculos de encontros de culturas, de tradições, de conhecimento e de prazer sensorial, que formaram a diversidade de São Paulo. Deste modo, ele pode ser considerado uma expressão da identidade cultural e da formação histórica e demográfica do estado de São Paulo e territórios vizinhos.

Sobre o registro de patrimônio imaterial

O registro imaterial foi criado por meio do decreto 57.439, de 2011, e permite o reconhecimento de manifestações culturais do Estado. Desta forma, além de proteger imóveis e bens importantes para a história do Estado, o Condephaat também pode preservar o patrimônio imaterial. O objetivo é identificar e reconhecer conhecimentos, formas de expressão, modos de fazer e viver, rituais, festas e manifestações que façam parte da cultura paulista. O primeiro registro de patrimônio imaterial do Condephaat foi realizado em janeiro de 2016, com o reconhecimento do Samba Paulista.

A presença da tradição oral na literatura para crianças

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Por Ronaldo Correia de Brito
Cascudo preocupa-se em garantir a veracidade do papiro egípcio, encontrado na Itália em 1852, e informa que o rudimento de livro para criança é um conto popular com os enredos próprios da época dos faraós, mas que também vivem nas histórias tradicionais do Brasil, apesar do tempo e da distância que os separam.
Cascudo observa que o registro das narrativas orais tem recebido menos atenção que o da poesia popular. Insiste na importância do conto popular tradicional como formador de uma memória emocional, social e antropológica. Segundo ele: “O conto é um vértice de ângulo dessa memória e dessa imaginação. A memória conserva os traços gerais, esquematizadores, o arcabouço do edifício. A imaginação modifica, ampliando pela assimilação, enxertias ou abandonos de pormenores, certos aspectos da narrativa”.
O erudito ensaio de Cascudo vale, sobretudo, por chamar atenção para o processo de construção da narrativa: a memória como arcabouço estruturante e a imaginação com seus acréscimos e transformações. Essa teoria em parte está contida em Walter Benjamin, quando ele identifica dois tipos de narradores que se complementam: O viajante, que vive a experiência lá fora no mundo, ouve histórias em suas andanças e, ao retornar à pátria, conta o que viveu, viu e ouviu. O segundo tipo de narrador é o sedentário, aquele que sem nunca sair de sua aldeia natal ouve as histórias e as experiências dos viajantes e, enquanto trabalha ou caminha, reelabora o que ouviu, subtrai, acrescenta, enxerta cores, sons, vocábulos e expressões locais e assim cria uma nova história.
O narrador sedentário reinventa formas e significados, poesia e símbolos; enxerga os ossos do que é narrado, dissecando músculos, gorduras e pele e construindo um novo corpo narrativo.
Jean-Claude Carrière, no prefácio de O Círculo dos Mentirosos, contos filosóficos do mundo inteiro, faz uma curiosa observação sobre os narradores judeus, para quem o ato de narrar é tão importante quanto a própria história. Segundo ele, “a tradição judaica pressupõe muitas vezes a existência por trás das palavras, da ordem das palavras e do próprio lugar que ocupam as letras, de uma espécie de estrutura secreta, uma mensagem colocada ali por não se sabe quem, um outro significado, o verdadeiro, como se a aparência do conto não passasse de uma máscara”.
É importante lembrar que a psicanálise fundada por um judeu, Sigmund Freud, buscou nos mitos seus significados mais secretos. Freud analisou histórias em que as civilizações se narram. Da análise dessas histórias coletivas, como a do rei Édipo, que foi reescrita por Sófocles, ele parte para a experiência da análise individual, um método em que a pessoa se narra sozinha, buscando verdades e significados que transcendem o aparente.

A importância dessas histórias que acompanham o homem desde que ele conseguiu juntar palavras em frases e frases em narrativas mais longas é narrá-lo tanto coletivamente como individualmente. No mesmo prefácio do Círculo de Mentirosos Jean- Claude Carrière relata que perguntou certa vez ao neurologista Oliver Sacks o que, a seu ver, era um homem normal. Depois de hesitar um pouco o neurologista respondeu “que um homem normal talvez fosse aquele capaz de contar a sua própria história”. E acrescenta que esse homem narrador “sabe de onde vem (tem uma origem, um passado, uma memória em ordem), sabe onde está (sua identidade) e acredita saber aonde vai (ele tem projetos e a morte no fim). Portanto, ele se situa no movimento de um relato, ele é uma história e ele pode se narrar. Caso esta relação indivíduo-história venha a se romper, por qualquer razão fisiológica ou mental, eis aí o relato partido, a história perdida, a pessoa projetada para fora do tempo. Ela não sabe mais nada, nem o que ela é, nem o que deve fazer. Ela se agarra a algumas aparências da existência. O indivíduo, aos olhos do médico, surge à deriva: “Ainda que seus mecanismos corporais funcionem, ele se perde no meio do caminho, não existe mais”.
Muito cedo me dediquei à investigação das narrativas de tradição oral e a uma coleta não sistemática de histórias, preocupado em construir uma escrita pessoal. Mais tarde, com alguns livros de ficção publicados e vários espetáculos teatrais encenados, passei a conviver com alunos de escolas públicas e particulares e a observar as dificuldades que eles tinham para desenvolver uma leitura, uma fala e uma escrita. Sobretudo nas escolas públicas, com crianças e jovens das populações chamadas de risco, esse travamento era mais evidente. A maior parte deles era incapaz de compreender e interpretar o que lia, quando sabia ler, e, o mais grave, não conseguia elaborar fios narrativos. Como médico clínico de serviços de psiquiatria para crianças e adolescentes, sei que a incoerência e fragmentação do discurso ou fala se justificam por doenças como esquizofrenia ou demência. Mas, entre jovens considerados normais, o que poderia causar essa dificuldade? Por que avançamos tão pouco na educação, mesmo quando anunciam progressos econômicos, com um aumento do consumo e do poder de compra?
Apropriando-se de contos que pertencem a todos, os jovens sem individualidade-história podem ser ajudados a se inventarem, a criar a própria história. Como é possível que alguém não consiga narrar-se, alegando que não possui uma história? O patrimônio de narrativas acumulado em milhares de anos é nossa história, ele pode ser sacado a qualquer momento, como um mágico saca um coelho de dentro de uma cartola. Somos um país predominantemente oral. No Brasil, uma das maneiras mais usuais de transmissão do conhecimento ainda é a fala, como se tivéssemos uma natural desconfiança da escrita, como se ela não se bastasse por si mesma e necessitasse do reforço da oralidade. Se analisarmos a maneira como o acervo de contos de tradição oral serviu de arcabouço para a literatura de povos de várias partes do planeta, talvez cheguemos a um método educativo que nos ajude a reverter os problemas de aprendizado da leitura e da escrita.
*Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor
Fonte: Blog do autor